O imunizante contra a Covid-19 da Johnson & Johnson
deveria ser uma das armas mais importantes da África contra o coronavírus. A
empresa com sede em Nova Jersey concordou em vender sua vacina de dose única em
quantidade suficiente para inocular um terço dos residentes do continente. E
seria produzida em parte por um fabricante sul-africano, o que aumentava as
esperanças de que as doses chegariam rapidamente aos africanos. Isso não se
tornou realidade.
A África do Sul ainda está esperando para receber a
esmagadora maioria dos 31 milhões de doses de vacina que encomendou à Johnson
& Johnson. O país administrou apenas cerca de dois milhões de doses. Essa é
uma das principais razões pelas quais menos de sete por cento dos sul-africanos
estão totalmente vacinados e o país foi devastado pela variante delta.
Ao mesmo tempo, a Johnson & Johnson está exportando
milhões de doses que foram envasadas e embaladas na África do Sul para
distribuição na Europa, de acordo com executivos da Johnson & Johnson e do
fabricante sul-africano Aspen Pharmacare, além dos registros de exportação do
governo sul-africano revisados pelo "The New York Times".
Glenda Gray, cientista sul-africana que ajudou a liderar o
teste clínico da Johnson & Johnson no país, disse que as empresas
precisavam priorizar o envio de doses para nações mais pobres envolvidas em sua
produção: "É como se um país estivesse cozinhando para o mundo e visse
seus pratos sendo enviados para outros locais cheios de recursos enquanto seus
cidadãos passam fome."
Muitos países ocidentais mantiveram doses fabricadas
internamente para si mesmos. Isso não foi possível na África do Sul por causa
de uma estipulação incomum no contrato do governo com a Johnson & Johnson
este ano. O documento confidencial, revisado pelo "The Times", exigia
que a África do Sul renunciasse a seu direito de impor restrições à exportação
de doses de vacinas.
Popo Maja, porta-voz do Ministério da Saúde da África do
Sul, afirmou que o governo não estava satisfeito com as exigências do contrato,
mas não tinha como as recusar. "O governo não teve escolha. Assine o
contrato ou não terá a vacina", declarou em comunicado.
A Johnson & Johnson já planejara que algumas vacinas
produzidas pela Aspen deixassem a África, mas nunca revelou quantas doses
estava de fato exportando. Os registros de exportação revisados pelo "The
Times" mostram que foram enviados 32 milhões de doses nos últimos meses,
embora esse não seja o número completo a deixar a África do Sul.
Segundo um porta-voz do Ministério da Saúde alemão, em abril
a Alemanha recebeu doses produzidas pela Aspen. Em junho e julho, a Espanha
recebeu mais de 800 mil doses, de acordo com o Ministério da Saúde do país.
A situação é complicada em toda a África. Embora vários
países do continente tenham recentemente recebido pequenas remessas iniciais de
doses da Johnson & Johnson, isso é uma fatia dos 400 milhões que a União
Africana encomendou ou tem a opção de encomendar para seus países-membros.
Cerca de dois por cento dos africanos estão totalmente vacinados.
O diretor científico da Johnson & Johnson, dr. Paul
Stoffels, disse que a fábrica Aspen faz parte de uma rede de produção na qual
as vacinas são rotineiramente enviadas entre os países para fabricação,
inspeção de qualidade e distribuição. "Fizemos o possível para priorizar a
África do Sul o máximo que pudemos." Ele observou que a Johnson &
Johnson no início deste ano forneceu cerca de 500 mil doses para vacinar os
profissionais de saúde sul-africanos, acrescentando que a fábrica de Aspen
forneceria doses exclusivamente para países africanos ainda este ano.
A Aspen é responsável pela etapa final da produção da
vacina, processo conhecido como "encher e fechar". A empresa recebe
quantidades em massa da vacina, envasa-a em frascos e depois a embala para
inspeções finais e entrega.
Algumas das doses da Aspen nunca foram usadas por causa do
temor de que pudessem ter sido contaminadas na fábrica de Baltimore, em
Maryland, encarregada da primeira fase de produção, de acordo com executivos da
Johnson & Johnson e da Aspen. Os problemas naquela fábrica, administrada
pela Emergent BioSolutions, prejudicaram os suprimentos de vacinas da Johnson &
Johnson, levando a empresa a atrasar as encomendas em todo o mundo.
Stephen Saad, executivo-chefe da Aspen, culpou a fábrica da
Emergent pela falta de doses na África do Sul. Ele disse que a Aspen não pode
controlar o destino final de suas doses, mas que gostaria que tudo ficasse na
África.
A Aspen agora está envasando doses que foram feitas em uma
fábrica na Holanda, com 40 por cento delas indo para a Europa e os 60 por cento
restantes, para a África até o fim de setembro.
A campanha de vacinação da África do Sul foi acelerada nas
últimas semanas, graças em grande parte às doses da Pfizer encomendadas pelo
governo e às vacinas doadas pelos Estados Unidos. Mas apenas cerca de quatro
milhões dos 60 milhões de residentes do país estão totalmente vacinados.
Isso deixou a população vulnerável quando uma terceira onda
de casos se espalhou pelo país. Às vezes, nos últimos meses, dezenas de
pacientes com Covid-19 no Hospital Helen Joseph, em Johannesburgo, esperavam no
pronto-socorro por um leito, e a infraestrutura do hospital teve dificuldade de
manter os enormes volumes de oxigênio destinados aos pacientes, segundo o dr.
Jeremy Nel, médico de doenças infecciosas. "A terceira onda, no que se
refere à quantidade de morte que vimos, foi a mais dolorosa, porque era a mais evitável.
Você vê pessoas morrendo às dezenas, todas elegíveis para uma vacina, que
teriam sido as primeiras a obtê-la."
Críticos apontam que o governo da África do Sul é o culpado
pela baixa taxa de vacinação. No início, a administração contava com o recebimento
do material com o apoio das Nações Unidas, mas houve atraso nas entregas. O
país demorou a iniciar negociações com os fabricantes para adquirir as próprias
doses. Em janeiro, um grupo de especialistas em vacinas alertou que a
"falta de previsão" do governo poderia causar "a maior falha
provocada pelo homem na proteção da população desde a pandemia da aids".
O acordo da Johnson & Johnson com a Aspen foi anunciado
em novembro. A instalação da Aspen em Gqeberha, na costa sul da África do Sul,
foi o primeiro local na África a produzir vacinas contra a Covid-19. (Outras
empresas depois anunciaram planos para produzir vacinas no continente.)
A vacina da Johnson & Johnson se tornou ainda mais
importante em fevereiro, quando os resultados de um estudo clínico sugeriram
que a da AstraZeneca oferecia pouca proteção contra infecções leves ou
moderadas causadas pela variante beta, que estava circulando na África do Sul.
Semanas depois, a Johnson & Johnson e o governo
assinaram um contrato de 11 milhões de doses. A África do Sul pediu mais 20
milhões em abril.
Segundo o contrato, o país concordou com a compra de 11
milhões de doses a US$ 10 cada. Esse foi o mesmo preço que os Estados Unidos
pagaram e pouco mais do que os US$ 8,50 que a Comissão Europeia concordou em
pagar. O contrato sul-africano impedia o governo de proibir as exportações da
vacina, citando a necessidade de as doses "atravessarem livremente as
fronteiras nacionais".
O contrato dizia que a Johnson & Johnson entregaria 2,8
milhões de doses à África do Sul até o fim de junho, outras 4,1 milhões até o
fim de setembro, e mais 4,1 milhões até o fim de dezembro. (O governo espera
que as 20 milhões de doses adicionais sejam entregues até o fim deste ano,
afirmou Maja.)
Até agora, a empresa está muito aquém dessas metas. A
dificuldade na aquisição de doses revelou os limites das fábricas de
envasamento locais, que deixam os países dependentes das vacinas de lugares
como a União Europeia ou os Estados Unidos, de acordo com o dr. Salim Abdool
Karim, que até março era copresidente do comitê consultivo ministerial da
Covid-19 da África do Sul. "Em última análise, a solução para nosso
problema tem de ser a fabricação própria de vacinas", afirmou ele.
c. 2021 The New York Times Company
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