Ausência de contato social e de estímulos cognitivos pode
ter consequências graves
"O que eu queria mesmo era tomar um café com meus
amigos, porque eu sei que ficar sozinha está me deixando um pouco louca. (…)
Não tem ninguém para tirar os pensamentos maus, os pensamentos confusos, da
minha cabeça. Normalmente, você pensa, 'meu Deus, eu vou morrer', ou, 'meus
netos vão morrer se forem para a escola'. Um papo rápido com um amigo vai fazer
você perceber que você está falando bobagem. Mas eu não tenho tido isso, então,
as coisas estão saindo completamente do controle."
"Tem gente que aprendeu a falar um novo idioma. Eu não
fiz nada. Fiquei parada, olhando para as paredes. Subi as escadas e me
perguntei, o que vim fazer aqui em cima?"
É dessa forma que a atriz e escritora britânica Sheila
Hancock, de 88 anos, descreve a experiência de viver em isolamento durante a
pandemia de covid-19 em entrevista à Rádio 4 da BBC.
Muita gente pelo mundo talvez se identifique com o
depoimento de Hancock. Mas, na idade da atriz, a ausência de contato social e
de estímulos cognitivos pode ter consequências graves. Em alguns casos, ela é
um fator de risco para o desenvolvimento de demência.
Já existe uma epidemia de demência no mundo. Segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS), há hoje 50 milhões de pessoas vivendo com
demência no planeta, e esse número deve ultrapassar 150 milhões em 2050.
A triste novidade é que a pandemia de covid-19 deve provocar
um aumento nesses índices.
Em entrevista à BBC News Brasil, o neurologista
especializado em demência e professor da Universidade São Camilo Fábio Porto
descreve o impacto negativo da pandemia sobre a saúde cognitiva de seus
pacientes e conta o que os estudos mais recentes nos dizem sobre o assunto.
Mas o médico não nos traz apenas más notícias. Porto
recomenda formas de se mitigar o problema e lembra que a pandemia nos oferece,
além das dificuldades, uma oportunidade única de aprender.
E ressalta que a sociedade precisa começar a falar sobre a
demência. "Não pode mais ser tabu falar sobre esse assunto."
Impactos do isolamento na saúde neurológica do idoso
O ser humano é um animal social, não foi programado para
viver em isolamento. Então, a obrigação de nos isolarmos causa grande estresse,
diz Fábio Porto à BBC News Brasil.
Sobre a experiência de isolamento relatada pela atriz Sheila
Hancock no início desta reportagem, o especialista pondera:
"Não é possível que isso não seja ruim para o cérebro.
Quebrar o contato, não ter nenhum estímulo, nenhum desafio cognitivo. Isso não
é natural, e as consequências acontecem."
Como especialista em demência, Porto tem podido observar de
perto o impacto do isolamento sobre os mais velhos.
"Tem sido muito amargo para os idosos. Eu trabalho com
idosos. E existe uma coisa que o idoso tem em menor quantidade: são as reservas
cognitivas."
Mas como assim?
A reserva cognitiva é como um banco de ideias,
conhecimentos, saberes e afetos que acumulamos ao longo da vida. E, quanto mais
acumulamos, mais temos recursos para resistir quando uma doença degenerativa se
instala no nosso cérebro.
'Vou
melhorar algum dia?': a repórter da BBC que luta contra covid há mais de 1 ano
Isso acontece porque, a cada novo conhecimento que adquirimos,
abrem-se novas sinapses, ou seja, novas ligações entre os neurônios. As
sinapses são como estradas. Quanto mais estradas, mais possibilidades de
alcançarmos nosso destino.
Por exemplo, quando uma pessoa com bom vocabulário não
consegue encontrar uma palavra, substitui essa palavra por outra.
Mas na população idosa, as reservas cognitivas são mais
frágeis, podem ser "gastas" muito mais rapidamente, explica Porto.
"Vários idosos que estavam bem, porque caminhavam,
faziam fisioterapia, faziam pilates, pararam. De uma hora para outra.
Frequentemente, esses pacientes descompensam do ponto de vista
neuropsiquiátrico", ele afirma.
"O que eu mais tenho visto aqui, e eu tenho um viés
porque eu trabalho com demência, são famílias dizendo, olha, o meu pai, a minha
mãe, estava bem até começar a pandemia. Na pandemia, comecei a ver que a
memória estava ruim."
Isso não quer dizer que todos esses pacientes desenvolveram
demência após o início da pandemia, ele ressalta.
"Ou a família começou a ficar mais tempo junto com aquele
idoso e percebeu um problema que já existia, ou a pessoa teve de mudar sua
rotina drasticamente e deixou de fazer um monte de coisas que estimulavam a
cognição e promoviam a saúde."
Como a covid-19 afeta o cérebro?
O isolamento social é um efeito indireto da pandemia de
covid-19, e por isso mais difícil de avaliar. Vejamos o que dizem estudos que
tentam medir o impacto direto da pandemia e do vírus sobre a saúde cognitiva da
população.
"Em quem teve covid, os estudos mostram uma grande
prevalência de declínio cognitivo", diz Porto.
Covid
longa: pacientes ‘recuperados’ podem ter problemas de raciocínio e memória,
aponta pesquisa
"O distúrbio cognitivo pode ser leve. A pessoa fica
mais desatenta, menos motivada, mais indecisa", continua ele. "Ou a
pessoa pode apresentar demência."
O DIA
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