Nem biometria distingue irmãos univitelinos e acesso a serviços fica restrito. Veja casos
Trocas de provas e confusões amorosas sempre estiveram no imaginário popular sobre gêmeos univitelinos ou, como também são chamados, idênticos. Mas a realidade pode ser ainda mais inusitada, e fugir totalmente do controle deles. Com aparências semelhantes e dados igualmente idênticos — data de nascimento, nomes de pai e mãe e sobrenomes —, eles muitas vezes têm dificuldades para acessar serviços diante da incapacidade de sistemas tecnológicos de distinguir um irmão do outro.
Rafaella Siqueira, de 34 anos, tentou, há cerca de um mês, abrir uma conta na Binance, uma plataforma de criptomoedas, pela internet, para começar a investir para o futuro de sua filha, Débora, de 4 meses. Recebeu duas negativas, mas só na terceira, descobriu o motivo. A Binance avisou que não tinha conseguido concluir a verificação de identidade. No mesmo e-mail, a instituição perguntou se ela tinha uma irmã gêmea. Sim, ela tem. E sua irmã já era cliente da empresa.
Para solucionar o problema, e provarem que não são a mesma pessoa, a Binance orientou as irmãs a fazerem um vídeo juntas, com cada uma segurando o respectivo documento de identificação. Como uma mora no Rio e a outra em Goiás, Rafaella desistiu de abrir a conta, mas se sentiu frustrada:
— Não imaginava que uma instituição internacional como a Binance tivesse esse tipo de problema, de não conseguir distinguir gêmeos. Se a minha irmã já tem conta e, claro, enviou a documentação dela, e estou enviando a minha, como seria possível sermos a mesma pessoa? Não faz sentido.
A raiz do problema
A raiz do problema é a mesma do que Rafaella considera uma falha na segurança de seu iPhone: sua irmã consegue desbloqueá-lo com a biometria facial. A sorte que é as duas se dão bem e confiam uma na outra.
A biometria é um mapeamento de pontos, nesses casos, dos rostos de pessoas para a verificação de fotos e documentos, explicam especialistas em tecnologia, e é cada vez mais usada para validar identidades. Mas a depender da quantidade de pontos anotados, a biometria pode ser incapaz de diferenciar mesmo mãe e filha. Já com os muitos pontos de uma biometria avançada, é possível mapear até o padrão de íris de uma pessoa, entre outras características, e até distinguir gêmeos.
No entanto, o professor do Instituto de Computação da UFF Raphael Carlos Machado, que também é cientista-chefe na Clavis Segurança da Informação, considera que biometrias nunca serão exatas, já que um ângulo ou machucado na pele pode mudar a imagem capturada. A margem de erro aceitável para identificar alguém vai, portanto, variar de acordo com a prioridade da empresa. Quando se trata de dinheiro, a tendência é de mais rigor. Provavelmente por isso, a Binance restringe o acesso das gêmeas, e a Apple libera, avalia o especialista:
— Um sistema de celular vai ter uma margem de erro aceitável maior, em nome da usabilidade — explica Machado, também .
Especialista em segurança de privacidade e pesquisadora-chefe da startup Unico, Yasodara Cordova opina que, em instituições financeiras, é possível cruzar outros dados para evitar a perda de uma cliente como Rafaella:
Tem como desambiguar isso. É possível coletar os dados inclusive de onde elas usam os celulares, que vão ser muito diferentes, e fazer uma consulta aos documentos oficiais, já que uma pessoa não tem dois CPFs e duas pessoas não têm o mesmo CPF.
Procuradas, Binance e Apple não comentaram os casos até o momento desta publicação. Instituições financeiras que também usam biometria facial em suas plataformas, como C6 Bank, Nubank e Banco do Brasil, informaram que usam outros recursos para cruzar dados e validar identidades para abrir uma conta digital, por exemplo. Em alguns casos, funcionários das instituições dão uma forcinha para as máquinas e fazem uma intervenção humana no processo digital. Também procurados, Itaú, Bradesco e Caixa não responderam.
Passagem aérea cancelada
Nem sempre é fácil entender a raiz dos problemas enfrentados por gêmeos, no entanto.
Em uma viagem de volta de Nova York para o Rio neste ano, a designer Kamilla Pavão, que estava acompanhada da mãe e de Karlla, sua irmã gêmea, não conseguiu imprimir sua passagem no totem da United Airlines no aeroporto. A irmã não teve problemas, mas ela precisou pedir ajuda a uma funcionária, que gerou um novo código para a emissão. O bilhete saiu, mas no nome da irmã.
Buscando novo auxílio, Kamilla foi informada de que a passagem tinha sido cancelada. A suspeita dela é de que a empresa tenha considerado os bilhetes com nomes parecidos e datas de nascimento iguais como um caso de compra duplicada com erro de digitação. E cancelou um dos tíquetes.
— Até que a terceira funcionária no aeroporto nos perguntou se éramos gêmeas e resolveu a situação. Mas o fato é que, mesmo tendo meu passaporte e todos os meus dados, diferentes do da minha irmã, a compra foi cancelada.
Procurada, a companhia aérea não se pronunciou.
FGTS na conta errada
Dielo Eiras também passou por um susto grande em 2020, por ter um irmão gêmeo, o Diego. Após 11 anos de trabalho numa empresa, Dielo foi demitido, mas não encontrou o valor devido em seu Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Recebi instruções da empresa para liberar o FGTS, mas havia duas contas vinculadas ao número que me deram para o acesso. Mas uma não era relativa ao meu CPF nem ao meu PIS e, sim, aos do meu irmão. Ele nunca trabalhou naquela empresa, mas a maior parte do dinheiro do meu FGTS foi para a conta dele — conta o publicitário de 34 anos.
Após muito empurra-empurra de responsabilidades, Dielo conta que conseguiu que a Caixa Econômica Federal instruísse a empresa sobre como pedir a retificação do depósito. O RH da ex-empregadora fez sua parte, mas foram quatro meses de espera e angústia, sem acesso ao dinheiro.
— Não sei exatamente o que ocorreu, mas acho que teve a ver com sermos gêmeos. Termos CPFs com numeração próxima, já que tiramos juntos, no mesmo dia, e apenas uma letra dos nossos nomes completos ser diferente — avalia Dielo.
A Caixa também não esclareceu o mistério.
Saga dos documentos
Certidões de nascimento apontam quando uma pessoa é gêmea de outra. Mas daí em diante, até mesmo a emissão de outros documentos pode virar uma novela. Ana Júlia e Juliana de Oliveira, de 20 anos, tiveram que fazer por duas vezes o processo para a carteira identidade em Juiz de Fora (MG).
— Pegamos os recibos para retorno e, quando voltamos para buscar os RGs, estavam prontos, mas disseram que precisaríamos refazê-los, pois as digitais estavam extremamente parecidas — conta a estudante Ana Julia.
As duas precisavam dos documentos para viajar, mas por sorte houve tempo para resolver o problema. Segundo a Polícia Civil de Minas Gerais, responsável pela emissão do documento na cidade delas, a partir de 2022 o serviço mudou. O confronto de impressões digitais passou a ser feito automaticamente, por sistema de comparação biométrica, percebendo de forma mais eficaz a “individualização e unicidade” de digitais.
Diego e Dielo também tiveram problemas quando pediram seus títulos eleitorais, aos 17 anos, quando viviam em Resende (RJ).
— Recebemos cartas de um juiz, em casa, para comparecermos no mesmo horário ao fórum — conta Diego, que é empresário.
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Ao chegarem lá, foram informados de que o intuito da convocação era conferir se os dois realmente existiam ou se as requisições de títulos eram uma tentativa de fraude eleitoral. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), juízes têm competência para decidir como solucionar suspeitas de duplicidade envolvendo inscrições atribuídas a pessoas gêmeas ou homônimas. Desde 2021, uma pessoa também pode informar que é gêmea já no formulário de requerimento de alistamento eleitoral para subsidiar a decisão da autoridade.
A permissão para dirigir foi mais burocrática para a internacionalista Karlla Pavão. Ela e a irmã fizeram autoescola em 2016, no Rio. Kamilla, porém, solicitou a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) semanas antes de Karlla, que, ao chegar ao mesmo posto do Detran.RJ, em Copacabana, teve problemas.
— O atendente olhava estranho para a tela e para mim. E chamou o supervisor dele, que me perguntou: “Você é gêmea?” Então, ele disse que eu não conseguiria fazer o registro ali, como fez a Kamilla. Tive que ir a outro posto, no Centro do Rio.
O Detran-RJ informou que não há impedimento para pessoas gêmeas tirarem CNH no mesmo posto.
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Karlla se diz espantada pelo fato de, nessas situações, a hipótese de gêmeas univitelinas não ser cogitada pelas pessoas ou pela tecnologia rapidamente. Muitas vezes é preciso muita conversa e comprovação:
— Até parece que não existem gêmeos que são idênticos e têm o mesmo sobrenome. Acham mais fácil se tratar de uma duplicidade no sistema do que pensar em gêmeos.
Mesmo quando se manifesta na tecnologia, o professor Raphael Carlos Machado ressalta que a origem do problema é humana:
— É uma característica da construção de processos para a tecnologia. O exercício é pensar tudo que pode causar falhas, levar a um processo judicial. Então se evitam fraudes, mas não vêm à cabeça que as decisões podem abranger gêmeos.
Por Ana Clara Veloso — Rio de Janeiro