O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, nesta quarta-feira (22.mai.2024), a prática de assédio judicial como forma de coibir o trabalho da imprensa e o direito dos cidadãos de serem informados. Todos os ministros presentes à sessão acompanharam o voto do presidente da Casa, Luís Roberto Barroso, que julgou totalmente procedente a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 7055, proposta pela Abraji em 2021, e parcialmente procedente a ADI 6792, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Relatora das duas ações, a ex-ministra Rosa Weber, hoje aposentada, havia votado pelo não conhecimento da ADI 7055, o que significa que não julgou a ação no mérito. Mas todos os ministros tomaram decisão contrária e apoiaram o voto de Barroso para acolher a ação e julgar seus pedidos de forma procedente.
O presidente do Supremo afirmou que o STF “tem, repetidamente, entendido que a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial no estado de direito democrático”. Segundo o presidente do Supremo, “preferencial significa que, normalmente, para superar a liberdade de expressão, impõe-se um ônus argumentativo maior para quem deseje defender a tese oposta”.
Em seu pedido, a Abraji destaca que o trabalho jornalístico tem sido prejudicado pela busca abusiva do direito de ação, sobretudo em casos em que um mesmo jornalista, por uma mesma reportagem, é processado diversas vezes em diferentes municípios, e de forma coordenada, com os autores das ações fazendo uso dos Juizados Especiais Cíveis (JECs).
Os dados do Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas, realizado pela Abraji, foram citados nas sessões do plenário do STF que serviram ao julgamento das ADIs. Em seu recente lançamento, o Monitor revelou que há pelo menos 654 processos judiciais contra profissionais de imprensa ou veículos de comunicação, configurando 84 casos de assédio judicial e envolvendo o montante de R$ 2,8 milhões em condenações.
No projeto do Monitor, a Abraji destaca que os critérios para estabelecer uma situação de assédio não dizem respeito apenas à quantidade de processos ou à multiplicidade de ações em diversas localidades, uma vez que uma única ação que tenha o objetivo de intimidar o trabalho da imprensa já pode ser considerada como tal. Já na ADI 7055, a prática do assédio foi definida como “ajuizamento de ações a respeito dos mesmos fatos em comarcas diversas com intuito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar a defesa ou torná-la excessivamente onerosa.”
Ao votar, Barroso, definiu que, quando configurado o assédio judicial, o jornalista pode solicitar que os processos sejam reunidos e julgados na comarca da cidade em que o profissional reside. O julgamento consagra o “assédio judicial contra jornalistas” como um termo de uso jurídico, como pleiteia a Abraji na construção da base científica e jurisprudencial que serviu de referência para o Monitor. (Veja o relatório neste link).
Além de Barroso, o ministro e vice-presidente do STF, Edson Fachin, acrescentou que a corte tratou de uma das formas de assédio judicial: “Esse assédio, tal como disse vossa excelência, se caracteriza pelo abuso do exercício de ação, o qual pode ser identificado, dentre outras práticas, primeiro pelo ajuizamento de inúmeras demandas sobre o mesmo fatos, segundo pelos pedidos de valor de indenização desproporcional […], e em terceiro lugar, pelo ajuizamento de diversas ações em comarcas distintas com a finalidade de gerar dificuldades logísticas.”
Os ministros declararam inconstitucional a aplicação de determinados dispositivos legais que hoje facilitam o assédio. Quando uma situação for vista como assédio, dispositivos legais que são vigentes para outras situações não se aplicarão ao caso. Os dispositivos citados são aqueles que estabelecem que o autor do processo pode propor a ação em seu próprio domicílio. Com a decisão do STF, essa regra de que o domicílio pode ser o do autor não vale, ela é inconstitucional. Outro ponto é que passa a ser obrigatória a reunião das ações configuradas como assédio em um único processo.
A ADI 6792, proposta pela ABI discutiu o uso abusivo de ações de responsabilidade civil mobilizadas para intimidar e silenciar jornalistas por meio de demandas infundadas. Para avançar na proteção contra esse tipo de prática, o Tribunal reconheceu que a responsabilidade civil de órgãos de imprensa ou jornalistas será cabível somente nos casos em que fique comprovado que houve dolo ou “culpa grave”.
A ministra Cármen Lúcia reafirmou a importância de debater o tema, enfatizando que a liberdade de expressão na sua manifestação pela imprensa é a base para a democracia. “Não existe democracia sem imprensa livre, não há possibilidade de a gente ter um avanço civilizatório sem que o direito de informar e ser informado especificamente pela imprensa”, acrescentou a ministra.
Acerca do tópico sobre assédio judicial, Cármen reiterou: “perseguir alguém efetivamente pela circunstância de ter publicado alguma coisa que não é conveniente ou não é dita como verdadeira de toda sorte é uma formulação perfeitamente enquadrada no conceito dessa perseguição judicial”.
Além de Cármen Lúcia e Fachin, respaldaram o voto de Barroso os ministros Cristiano Zanin e André Mendonça, que votaram na sessão de 16.mai.2024, e Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Nunes Marques e Alexandre de Moraes. O ministro Flávio Dino, por substituir a relatora, ministra Rosa Weber, não pode votar no caso.
“Este é um momento histórico para o jornalismo brasileiro porque o Supremo entendeu como inconstitucional o uso de determinados dispositivos legais nas ações que configurem assédio judicial. Sabemos que esta é uma forma de ataque à imprensa que tem crescido dia a dia no país. A definição do que constitui assédio é muito importante não só para identificar, mas para combater esse modelo perverso de ação”, afirmou a presidente da Abraji, Katia Brembatti.
O mais notório caso de assédio judicial ocorreu em 2008, com a jornalista Elvira Lobato, então repórter da Folha de S. Paulo. Ao publicar reportagens sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a repórter passou a ser processada por dirigentes da igreja em todos os estados brasileiros. Foram 111 processos ao mesmo tempo, em municípios diferentes. Elvira e sua advogada, Tais Gasparian, com sua equipe de advogados, tiveram de correr o país para fazer a defesa.
Elvira venceu todas as ações, mas ela lembra que, ainda assim, a igreja saiu vitoriosa, pois sua intenção era cercear a imprensa e perseguir a jornalista. “Por vários anos ela calou o único veículo que fazia uma cobertura sistemática da igreja sob o ângulo dos negócios”, afirmou Elvira em um debate promovido pela TV Cultura. “Foi tão impactante para mim, tão doloroso esse processo, que isso acabou precipitando a minha aposentadoria”, revelou. Se, na época, já estivesse valendo a decisão do STF, todos os processos seriam reunidos em uma única ação, no domicílio de Elvira Lobato.
Advogada da Folha de S. Paulo, Gasparian é uma das maiores especialistas em liberdade de expressão e imprensa do Brasil. Uma das fundadoras do Instituto Tornavoz, que fornece apoio jurídico a jornalistas perseguidos, ela é a autora da ADI proposta pela Abraji no STF.
“A decisão do STF demonstra que a Corte, mesmo com outra composição, reafirma a primazia da liberdade de expressão sobre outros direitos fundamentais”, comemorou a advogada. “O caso que envolveu a jornalista Elvira Lobato foi gravíssimo. Relativamente a esse caso foram proferidas duas das melhores decisões do STF sobre liberdade de expressão: a que revogou a Lei de Imprensa da ditadura (ADPF 130) e essa de agora (ADI 7055)”.
A tese de julgamento aprovada pelos ministros é a seguinte:
1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.
2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio.
3. A responsabilidade civil de jornalistas ou órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).
Abraji
Crédito da foto: Antonio Augusto/SCO/STF
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